
Eu soube que era indígena na primeira série quando fui fazer um trabalho da escola e minha mãe me contou que a nossa família era indígena. Lembro até hoje de como fiquei chocada e como foi difícil entender. Na escola parecia que índio era uma coisa muito distante, quase mítica, que vivia sei lá aonde, fazia sei lá o quê.
Minhas tias sempre falaram de si e da família como indígenas, diziam que a gente era índio bravo, fui criada quando pequena dentro de valores comunitários indígenas, no contato com as medicinas, numa família de benzedeiras. Quando vim criança pra São Paulo o meu primeiro choque cultural foi as crianças não dividirem a comida e se ofenderem ou darem desculpas quando pedia um pedaço. Eu sou da primeira geração da família que não passou fome e sempre aprendi que comida era de todo mundo que estivesse ali pra comer.
Minha mãe conseguiu ascender socialmente quando passou num concurso público e fez questão que a gente morasse em certos bairros de classe média alta e estudasse em certas escolas de São Paulo. Nesses espaços sempre fui exótica e ouvi incansavelmente como sou diferente, tenho um jeito diferente, minha personalidade muito forte, brava demais, selvagem, inadequada. Sempre achei que o choque cultural fosse por ser pernambucana, nordestina e ignorava que fui criada em cultura indígena.
Minha história é feita de camadas e camadas de não pertencimento, de sentimento de elo perdido, uma dor abismal sem nome me acompanha desde sempre. Faz poucos anos que finalmente descobrimos nossa etnia, Xukuru do Ororubá, do agreste de Pernambuco, não tão longe de onde minha avó nasceu. Sinto nesse processo que fui devolvida pra mim mesma e aos poucos tenho falado mais sobre isso, minha relação com a espiritualidade e as medicinas.
Ser indígena no Brasil é uma história de muita dor, humilhação, existir não-existindo, por isso tenham delicadeza pra tratar desse assunto. Minha história não é um causo pitoresco e interessante e não quero ouvir como é lindo ter cara de índia. O “dia do índio” é dia de trauma, ferida que só pode ser curada coletivamente.
Julia Francisca, 20 de abril de 2021
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