aliendígena 

melancolia da terra, melancolia do céu

Eu deságuo quando tudo vira deserto. Eu posso estar transbordando, mas o ambiente ao meu redor desertificou. Um estalo, um raio, um corte seco, um estouro seco começa o processo de desertificação. Como naquele conto da Marina Colasanti em que a areia vai invadindo toda a casa e tudo ao redor. Mas pra mim isso não é analogia, nem literatura: é um corpo, um espírito, um ambiente. Uma aridez triste e solitária se instaura. Não é uma desconfiança ou paranoia, é um estado de corpo que me toma – estado de insegurança, os fios invisíveis se romperam, tudo virou deserto, no meu corpo aquela relação que se cultivou virou marca seca e doída.

Os rastros das pessoas ficam em mim. Às vezes são rastros que me cultivam, às vezes são rastros que me envenenam, às vezes são rastros secos que doem. Meu corpo também vira terra seca, areia e desmancha, pulveriza, vou perdendo a integração e começo a desmanchar, desfragmentar. Não tem ideia, palavra, conversa, argumento, entendimento ou elaboração que me tire desse estado de corpo. E quando penso naquela relação dói e quando encontro a pessoa dói também. Por isso esse risco imenso: o de morrer de fome e inanição se eu não cultivar – e o risco do cultivo que não vingou virar uma marca doída que resiste eras depois de um encontro ruim. 

O desaguamento acontece junto com a desertificação. Como se o terreno árido puxasse a água do meu corpo. Então eu sou corpo de água que chora chora chora e se afoga. E sou corpo de areia seca envenenada machucada. Me desmancho em choro e poeira. 

[nos momentos ruins eu quero morrer pra tentar voltar pro planeta de onde vim]

Como não sou desse planeta e o ambiente é muito hostil pra mim, sinto que minha existência está sempre por um fio – ou alguns fios. Cada relação que eu tenho é um fio que me liga à existência. Estou sempre na beirada de me desintegrar, perder a pele de novo e virar espectro, alma penada. Eu não sou desse planeta, mas eu não sei de onde vim e não tenho pra onde voltar. Eu vim pra cá para comungar com vários seres, eu sei porque estou aqui. Mas vivo nesse cupinzeiro de humanos e me relacionar com os humanos nesses tempos é tão desgastante. É que eu sou de outro tempo também.

Ainda bem que aqui onde eu moro agora tem uma pitangueira que eu encontro todos os dias, os passarinhos, o morro, a mata, a lua, o sol, o mar, a ilha, os urubus, a areia, o vento, os peixes, as tartarugas… A ayahuasca me contou que o que me liga à Terra é o amor, ela me mostrou esses fios que estão em todo lugar e dão liga pra existência. Hoje eu não perco mais a pele, nem me desintegro completamente. Porque tenho relações de longevidade com os elementais, as estrelas, os gatos, os mortos. Esses são os fios fortes. Os fios com os humanos estão sempre à beira de se desfazer.

Eu tento explicar, as pessoas não ouvem e traduzem “ah! então é isso?”. Não, não é isso. Elas acham que estou falando de uma “certeza” ou de uma “crença”, mas não é isso. Não adianta entender ou acreditar em outra coisa. Se um estado de corpo me toma envolve muito trabalho e feitiçaria pra mudar de estado. Às vezes essa marca seca não passa nunca. Infelizmente pra mim, que muitas vezes ainda gosto da pessoa e acho que seria possível me relacionar de outras formas – seria, mas não é de fato, porque a marca continua ali e dói. 

Cada fio que se desfaz eu passo por esse processo doloroso de desintegração pra depois voltar. O mais difícil dos humanos entenderem é que eu não estou usando uma expressão, uma figura de linguagem, uma metáfora… Quando digo que já perdi a pele é porque eu realmente perdi a pele, fiquei sem tato, meu pé não tinha ponto de contato com o chão, os sons me atravessavam e sem pele tudo ficava turvo e derretido ao meu redor. [pessoas invisíveis sussurravam morte no meu ouvido e falavam dentro da minha cabeça…]

Não preciso usar substâncias para ser tomada por esse tipo de estado. Essa é a forma que descobri mais fácil de explicar. É como se eu estivesse drogada, sem usar nada. Aí algumas pessoas entendem um pouco mais, outras ficam mais incrédulas ainda. Fui desde cedo buscar maconha, santo daime, lsd… para estudar esses estados que eu entro e sempre entrei. Por isso hoje eu sei voltar da desintegração, aprendi a voltar, aprendi a escolher se eu vou fazer uma viagem no cosmos ou se eu prefiro ficar por aqui. Não tenho controle sobre a desintegração, mas sei refazer pele, tenho conhecimento, instrumentos e manejo pra voltar – às vezes mais rápido, às vezes mais devagar, às vezes piscando: ora com pele ora sem, um momento fantasma, um momento com rosto humano, transparências que se sobrepõem.

Recentemente eu pensei se em algum momento eu deveria voltar pro nordeste. A única experiência de sentir que eu tenho o “meu povo” é na cultura popular nordestina. Os mortos que me acompanham e os encantados ficam muito felizes e nossos fios se cultivam no maracatu, no coco de toré, na ciranda de Lia, no catimbó… 

[mas tenho medo de ser um alien lá também…]

Eu não sou desse planeta e passei parte da minha vida como espectro. Passando por essas experiências corporais extremas sozinha, com humanos ao redor que não me faziam companhia, não produziam fio. Hoje tenho algumas relações humanas em que eu experimento uma longevidade de amor. Tenho até algumas relações que se romperam e a marca ainda me cultiva e é boa. Encontrei também em dois processos de psicanálise companhia para poder fazer a travessia para esse mundo com amor. 

Antes eu realmente estava de fora, desencarnada, hoje eu sou naturalizada cidadã terráquea e assimilei os costumes locais. Mas é uma vida disfarçada, infiltrada entre humanos. A maioria acha que eu sou humana, mas eles sentem alguma coisa estranha em mim e acham que esse disfarce é maldade ou alguma espécie de manipulação. Não é. A estranheza vem porque eu tenho uma aparência humana e terráquea – sem ser. E também porque eu vivo na beirada da desintegração – o disfarce humano também é capa protetora e me segura. Algumas pessoas percebem que não sou deste planeta, me reconhecem e isso me faz tão feliz que eu choro de bom encontro com a umidade. 

Não posso deixar que a maioria dos humanos perceba a desintegração. Porque a maioria vai me machucar mais e me atrapalhar pra voltar. Mesmo os humanos que me enxergam e me ajudam só podem me encontrar depois que eu comecei a voltar, a refazer a pele. Só nas pajelanças e na umbanda eu posso estar com humanos na desintegração. 

Na quadrilogia da Elena Ferrante ela conta que a amiga vive desmarginações. As coisas e as pessoas vão perdendo as margens. Penso que pra autora é literário, pra amiga é literal. Perder a pele é como a desmarginação porque meu corpo perde contornos e tudo ao redor também. Sinto como um rasgo no tecido da realidade. Os fios de afeto costuram esse tecido e algumas vivências fazem rasgar. 

Ler Clarice e Nietzsche às vezes rasga o tecido de um jeito ruim porque lá não tem os encantados e elementais. É do rasgo pro nada, uma vastidão e secura de não ser. E não ser é pior que a morte, porque a morte é um fim, uma borda, margem. Eu gosto de ler Clarice e Nietzsche, mas é perigoso. Por isso só leio um pouco de cada vez. 

Acho que entendo a amiga da Elena Ferrante nunca ter saído do bairro, nunca ter viajado, se mudado. É que o bairro e aquelas relações são os fios dela, são o que costura a realidade dela. Eu consigo viajar, mas não pode ser por muito tempo. Preciso voltar pra casa pra me refazer. Se eu fico muito tempo em um lugar sem fios fortes corro o risco de me pulverizar rapidamente. 

[escrevo pra tornar literário isso que me chega como força bruta de quebrar o corpo.]

Santos, outubro de 2024

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